MUÇAMBÊ
Muçambê, cidadezina perdida nos cafundós do sertão nordestino, mirrada, pacata, empoeirada; uma pracinha, quatro o cinco bodegas, o cemitério no plano alto: é a visão primeira quem se tem do lugarejo; uma capelina caiada de branco, o açougue improvisado num alpendre de palha, expondo aos seus costumeiros fiados uma manta de toicinho e dois pernis inçados de moscas, sob olhares pidões dos sarnentos vira-latas: Rompe Ferro, Trovão e Surubim, abanando os rabos no terreiro e ladrando a esmo; um posto de atendimento médico precário, sem médico diga-se de pasaagem. Escola não existe. Um arremedo de segurança pública, formada pelo guarda Ambrósio e um carcereiro, esprimidos ambos num cubículo fétido, apelidado de delegacia; procuram manter a lei e a ordem.
O guarda Ambrósio, figura respeitadíssima. 1.50m. 75 kilos, ruivo, vesgo, paramentado na sua farda azul, quepe preto em cima dos olhos, enterrado até as orelhas, carregando na cinta uma garrucha enferrujada e na mão direita um cassetete. Nos céus de Muçambê, os urubus em assembléias, revoejam espreitando carniças, determinando carcaças. Nas minguadas ruas de chão batido, galinhas ciscam nos excrementos deixados pelas vacas, jegues estropiados e refugados perambulam sem destino esperando a morte, ovelhas e cabras disputam tacos de sabugos deixados nas beiradas das calçadas, porcos fuçam nos esgotos a céu aberto.
Essa é a Moçambê que conheci, a Muçambê de Xico Bode, a cidade de um dono só, sofrida, surrada, mamada, massacrada, explorada, porém ordeira e esperançosa no seu padroeiro São Benedito.
Alío sanemanto básico é uma utopia, vaso sanitário existe somente na casa do prefeito Xico Bode e na pensão da Dona Edileuza, localizada na Rua das Muriçocas, bem no centro do vilarejo. Os demais moradores usam as moitas de mofumbos nos arredores, para suas necessidades fisiológicas. As bodegas tres no total, são as verdadeiras salas de visita de Muçambê, impregnadas de cheiros indistinguiveis. São tribunas democráticas sortidas de fumo de rolo, rapé, querosene, bolachas, sabão em barra, colorau, cominho, rapadura,fubá, fava, cachaças, bêbedos, cusparadas e penduras.
Na pensão da Dona Edileuza se encontram: doces de batata, doce de leite, bolo de puba, tapioca, beijú, cajuina, aluá de abacaxi, queijo de coalho, alfenim, cuscuz, filhós, dois potes e duas quartinhas com água friíssima. O jogo do bicho é importado da Paraíba. Lazer não existe no lugarejo, salvo nos eventuais casamentos e batizados. Aí a cachaça corre solta, nos forrós as brigas se mutiplicam e o guarda Ambrósio trabalha dobrado com tanta embriaguez e desordens.
Os meninos têm mais opções para passar o tempo: descalços, ranhosos, buchos quebrados, cabelos afogueados eplo sol, calças curtas de suspensórios, remendados nos fundilhos, embrenhados nas caatingas, com os cambitos dilacerados pelos açoites dos cipós, atirando de baladeiras para matar calangos e preás, jogando castanhas na falta das bolas de gudes, brincando de curral de bois sob o pé de tamarindo e, nas asas da imaginação, enchendo a miniatura de curral com ossos de caprinos e bovinos, catados nos monturos, como se fossem verdadeiros bois tangidos de outras fazendas. O cavalo de pau é outro brinquedo preferido dos meninos. Nada mais que uma vareta de marmeleiro onde o menino se encancha nela e, usando da fantasia, sai em disparada, achando-se um varqueiro de perneira, gibão e espora a cavalgar seu alazão, aboiando aos seus bois imáginários ( pequenos ossos) apartados nos monturos. As brincadeiras das meninas, algumas já se pondo moças, são mais limitadas, sob os olhares censuradores das mães, cantam nas brincadeiras de rodas improvisadas:
Senhora Dona Sancha
Coberta de Ouro e prata,
Descubra o seu rosto
Que eu quero ver a sua cara.
E continuam cantando:
Eu sou pobre, pobre, pobre
Demavé. mavé, mavé
Eu sou pobre, pobre, pobre
Demavé, mavé, decê.
Continua
Livro: A Vaquina da Primeira Dama
Editora CEPE (1998)
Págs 11/12/13